Revista Zimbro
by Amigos da Serra da Estrela
 

2025-05-07

A Lontra e o seu papel nos ecossistemas ribeirinhos

A Lontra e o seu papel nos ecossistemas ribeirinhos

 

Palavras chave

fauna  lontra  rios  
 

A lontra euroasiática (Lutra lutra) é um mamífero semi-aquático, carnívoro e um dos animais mais fascinantes da fauna portuguesa. Ou pelo menos não perguntem a mim, que sou suspeito!! Pois é, sou fascinado por este animal incrível desde os meus 10-11 anos de idade. Quando o vi numa revista de pesca à truta, descrito como “rainha e fantasma dos rios” (havia dúvida se ainda houvesse na altura, na Itália – o meu país – tão rara que era), foi amor à primeira vista. A sua beleza, junto com um estilo de vida semi-aquático que a deixa ser uma excelente nadadora, mas também à vontade na terra firme, capturaram por completo a minha imaginação.

Mas pronto, voltando a nossa lontra, ela pertence à família dos Mustelídeos, a mesma das doninhas, dos texugos, das fuinhas, dos toirões, e do visão americano, esta última sendo uma espécie invasora na Europa. A lontra é super adaptada à vida aquática, possuindo patas palmadas para nadar melhor, uma pele muito densa que a isola do frio e lhe permite nadar por muito tempo mesmo em baixas temperaturas, narinas que se fecham quando mergulham, olhos adaptados à visão subaquática, e bigodes bem compridos à fazer inveja ao Quim Barreiros, chamados tecnicamente “vibrissae”, que lhe servem por localizar as presas debaixo das águas, sobretudo quando estas são turvas. Por outro lado, a lontra anda bem também na terra firme, onde todavia tem um andatura menos elegante e eficaz comparada com outros carnívoros terrestres do seu porte (pois é, mesmo sendo fã da lontra, admito que na terra firme é menos suave e graciosa do que um lobo ou uma raposa, por exemplo).

A lontra habita rios, ribeiras, lagos, charcos, zonas húmidas e até algumas zonas costeiras, mas neste caso tem que ter sempre alguma fonte de água doce por perto para lavar a pele do sal do mar e para beber. Em Portugal, por exemplo, há populações de lontras costeiras em várias partes do país, sendo uma das mais conhecidas a que ocorre ao longo da costa do Sudoeste Alentejano, ou então em várias marinas do Algarve, mas lembro-me perfeitamente de um vídeo de uns anos atrás de uma lontra a correr entre as pernas de um bar de Gaia, ao pé do Porto! No fundo, costumo dizer que onde há água em Portugal, há lontras. O que contrasta e bastante com o que geralmente as pessoas acreditam. Sim, porque vivo em Portugal há muitos anos, e falo com imensas pessoas, e a grande maioria das pessoas, quando descobre que trabalho com lontras, sempre me diz “ah, que fofinhas, gosto muito de lontras, há tão poucas, não é?”. Nestes casos, toca-me sempre explicar que se um “Italianini” (como vocês nos chamam, a brincar hehe) veio para Portugal, lá vão quase 20 anos, foi mesmo porque na verdade em Portugal as populações de lontras sempre se mantiveram saudáveis e bem distribuídas em todo o país. Era, portanto, o país certo para fazer um doutoramento sobre lontras, e foi por isso que vim cá morar, no longínquo 2007 (mas esta é outra história, agora continuamos a falar um pouco da biologia e ecologia desta espécie maravilhosa).

A lontra é o predador de topo das águas doces da Europa, desempenhando um papel essencial nos ecossistemas ribeirinhos. Ao caçar, seleciona presas mais vulneráveis e ajuda a regular populações de peixes e invertebrados, contribuindo para o equilíbrio do ecossistema aquático. Isto desmente o falso mito que as lontras acabam com os peixes nos rios. Infelizmente, somos nós humanos que damos cabo dos rios, com métodos de pesca ilegais, trazendo demasiado peixe para casa, inclusive espécies protegidas e tamanhos demasiado pequenos, e poluindo e destruindo os ecossistemas aquáticos, enquanto as lontras sempre andaram por cá e sempre comeram peixe sem nunca levar as populações piscícolas ao estermínio, nem localmente, nem globalmente. A presença da lontra num curso de água, aliás, significa que este está relativamente bem conservado e com disponibilidade de alimento, como peixes, anfíbios e crustáceos, sinal, portanto, de um ambiente equilibrado e saudável.

Há estudos, feitos por colegas norte-americanos, muito interessantes sobre outra espécie de lontra, a lontra marinha (Enhydra lutris), que ocorre, por exemplo, nas costas da Alaska, Califórnia e da Sibéria, onde foi demonstrado o papel chave desta espécie sobre o ecossistema marinho. Onde as populações de lontra desapareceram, as populações de suas presas, em particular dos ouriços do mar, aumentaram descontroladamente, acarretando por sua vez uma diminuição drástica das florestas de kelp, com consequente perda de fixação de carbono no ecossistema. Os autores destes estudos chegaram a estimar, assim, que a presença das lontras marinhas nestes locais tinha um valor económico elevadíssimo, graças ao seu papel na fixação de carbono no ecossistema e portanto no combate às alterações climáticas.
Muitas vezes penso que se as lontras marinhas têm este efeito num ecossistema tão vasto como o oceano, imaginemos quão relevante terá que ser o papel da nossa lontra, a euroasiática, em ecossistemas muito mais pequenos como os rios. Lá está um aspecto muito relevante da ecologia desta espécie e sua interação com o ecossistema todo que seria muito interessante estudar!

Mudando de assunto, as pessoas frequentemente me perguntam se é fácil ver lontras. Aliás, muitas vezes as mesmas pessoas que admitem ignorarem que Portugal está literalmente “cheio de lontras” (como costumo dizer), admitem “nunca terem visto nenhuma”. E se calhar daí advém a ideia de que não há ou há poucas lontras no país que muitas pessoas têm. Nestes casos, é importante salientar que na verdade qualquer espécie de carnívoro, e mesmo no geral de mamífero, são mais frequentemente ativos durante a noite, além de serem bastante elusivos, e portanto nada fáceis de se avistar. A lontra não faz exceção, sendo esquiva e principalmente ativa à noite (com excepções em algumas zonas de alguns países, sendo as lontras das Ilhas Shetland, na Escócia, famosas por serem ativas principalmente durante o dia). Contudo, a natureza nunca é previsível ao certo, e de facto de vez em quando acontece que alguns indivíduos de lontra se deixam observar até com alguma facilidade, pela jóia dos sortudos testemunhos. É a beleza da variedade individual. Como nós humanos somos mais ou menos tímidos, segundo o nosso caráter e, às vezes, até o momento do dia/ano, assim deve acontecer com as lontras: a maioria delas foge logo mal se apercebem de nós, mas algumas, às vezes, deixam-se observar sem problema algum. É o caso, por exemplo, de lontras frequentemente observadas nas marinas do Algarve, ou mesmo em alguns centros urbanos, inclusive grandes cidades. Famoso é o caso, por exemplo, de uma população urbana de lontras na cidade de Singapura (neste caso é outra espécie, chama-se “lontra-de-pelos-lisos”, Lutrogale perspicillata) (ver foto abaixo).

Nota mais técnica: os ritmos de atividade da lontra podem depender também de outros fatores, ligados ao sexo e idade do indivíduo, ou aos próprios ritmos de atividades das presas, ou mesmo às fases lunares, como por exemplo descrevi neste artigo.

A lontra euroasiática tem sido considerada uma espécie principalmente territorial e solitária, se bem que mesmo uma investigação que levei a cabo em Portugal aponta para um grau de sociabilidade maior (se tiveres curiosidade, encontra-se aqui o artigo). Mesmo assim, os territórios de machos adultos raramente se sobrepõem com os de outros machos adultos, e o mesmo acontece com os territórios das fémeas, que não se sobrepõem entre si. Este padrão, que em linguagem técnica em biologia vem definido como “territorialidade intra-sexual”, é típico dos mustelídeos, de facto.

Geralmente, reproduz-se uma vez por ano, dando à luz até cinco crias, em média, 2 ou 3. Às vezes, têm sido documentados casos em que a mãe abandona uma das crias, não sendo claro o porquê (podendo estar relacionado com falta de comida no ambiente ou alguma doença percepcionada pela mãe da cria). Isto explica porque têm sido encontradas lontras bebés na natureza, como foi o caso da Ilkka (ver foto abaixo), a lontrinha que por alguns meses foi a nossa “filha” (minha e da minha ex-companheira da altura, que também tinha uma forte paixão e estudava lontras), que me foi dada para cuidar dela até ser possível devolvê-la à natureza. Também tem a história de Eureka, outra lontra que tinha sido encontrada por pessoas quando estava sozinha, de bebé, na natureza (no Algarve), muitos anos atrás. Tentámos devolvê-la à natureza quando era maior, mas tivemos que desistir, porque não tinha skills sociais, e recapturá-la, e depois passou o resto da sua vida num museu (no Aquamuseu em Vila Nova de Cerveira).

Caso encontremos uma cria de lontra sozinha na natureza, o melhor a fazer é deixá-la onde se encontra, sem a mexer ou disturbar, eventualmente monitorando a situação de longe (possivelmente a pelo menos 100-200m, para minimizar o distúrbio), e alertar as autoridades no caso em que a cria continue a estar sozinha após muitas horas ou no dia seguinte. Isto porque às vezes as mães podem se afastar das crias enquanto caçam, mas depois sempre voltam, e ao estar a apanhar uma cria sozinha ao acharmos que estava abandonada podemos estar a separar uma família de lontras.

Apesar de ter enfrentado na maior parte dos países europeus um declínio populacional nas últimas décadas do século XX devido à poluição dos rios e à destruição do seu habitat, o regime de proteção, as medidas de conservação e a melhoria da qualidade da água permitiram a recuperação da espécie na maior parte da sua área de ocupação. Em Portugal, as populações de lontra, como já disse, mantiveram-se sempre bastante saudáveis, provavelmente graças à ausência de forte industrialização e a abundância de comida, em particular do lagostim vermelho da Louisiana (Procambarus clarkii), uma espécie invasora que, contudo, constitui grande parte da dieta da lontra na península Ibérica.

Contudo, mesmo em Portugal a lontra continua a enfrentar desafios, como atropelamentos em estradas próximas a cursos de água, métodos de pesca ilegais que destroem os rios e sua fauna, alterações climáticas que afetam os regimes hídricos, uso excessivo do recurso hídrico, fragmentação do habitat, inobservância do fluxo mínimo ecológico nos rios, e o uso excessivo de pesticidas e outros produtos químicos que contaminam os rios. A proteção dos cursos de água e suas margens, a criação de passagens seguras em estradas, e a conservação e o restauro das zonas húmidas, são medidas fundamentais para garantir a sobrevivência desta maravilhosa espécie a longo prazo.

As lontras são verdadeiros guardiões dos rios. Investir na sua proteção é investir na sustentabilidade dos ecossistemas ribeirinhos, e portanto também na qualidade da água para as pessoas. A sua presença não só enriquece a biodiversidade, mas também reforça a necessidade de conservar os espaços naturais que beneficiam tanto a fauna como as comunidades humanas.

Imagem de capa: População urbana de lontras-de-pelos-lisos (Lutrogale perspicillata) que deixam-se avistar facilmente na cidade de Singapura. Caso se encontrem a viajar por esta interessante cidade e queiram observar lontras, contactem-me (lontrenzo@gmail.com) e vos porei em contacto com uma rede de voluntários que cada dia tenta manter o rasto destas lontras na cidade e evitar conflitos com os humanos.

 
 

 
 
 
 

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