2025-02-07
Palavras chave
cantaros editorial estrelaNo fim do mês de Janeiro, aceitei o desafio de subir ao Cântaro Gordo para partilhar uma experiência em família, depois de um bonito – mas suave – nevão que pintou de branco algumas zonas da Serra da Estrela. O momento em que alcançámos os 1877 metros de altitude do Cântaro foi marcado pelos raios de Sol que nos intensificavam a expressão de satisfação que não conseguíamos esconder no rosto. Uma paisagem deslumbrante apresentava-se diante de nós, oferecendo-nos um horizonte abastado: de um lado, a Candeeira; do outro, o Covão Cimeiro. As nuvens vagueavam serenas e o Cântaro Magro estava coberto. Além dos sons da montanha, podiam ouvir-se apenas os nossos pés calcando a neve fofa, os diálogos que fomos tendo ao longo do caminho, as buzinas dos carros e as sirenes de ambulâncias, que circularam todo o dia por aquela região.
De facto, ir a Roma e não ver o Papa é incompreensível. Porém, ir à Serra da Estrela e não ver a Torre, por oposição, devia se de louvar.
Mais um ano em que a realidade não muda. A Serra da Estrela sofre com o turismo que continua a ser promovido na região, que remonta ao início dos anos 60, um turismo marcado pelas enchentes de grupos que, em excursões, procuravam conhecer os 1993 metros de altitude da Serra mais alta de Portugal continental. Nos dias de hoje, o cenário mantém-se, agravado, no entanto, pela realidade de um turismo individualizado, que suja a paisagem serrana com centenas de carros que se movem no sentido da Torre. Os anos passam, o modelo turístico não se altera e, infelizmente, não se compreendem as vantagens de alimentar esta dinâmica, que em tantos aspectos prejudica a Serra da Estrela.
Após alguns minutos em que pudemos admirar a vista que se exibia elegante à nossa frente, as nuvens desvaneceram-se na paisagem, descobrindo o cimo do Cântaro Magro e desvendando as dezenas de carros que por lá se encontravam parados, impedidos de chegar ao destino que os tinha movido até ali.
A Serra são os vales, os montes, o queijo, a lã, as curvas e as contra-curvas, os covões, as naves, as fragas, os animais, o nascer e o pôr-do-Sol, as aldeias, a pronúncia, as tradições, as vestimentas, os cheiros e as cores. A Serra são todos os lugares e todas as experiências de que os seus visitantes continuam a estar privados por consequência do modelo turístico que se teima promover. A passagem pela Torre não dignifica a Serra da Estrela. Os visitantes não beneficiam deste modelo turístico, as pessoas locais não beneficiam deste modelo turístico e a Natureza não beneficia deste modelo turístico.
Os visitantes concentram-se sucessivamente nos mesmos lugares e as aldeias, essas, mesmo tão próximas, parecem situar-se cada vez mais longe. Quando a estrada da Torre está aberta, os transportes dirigem-se de passagem ao ponto mais alto da Serra da Estrela, mas quando a estrada da Torre está fechada, os mesmos transportes movem-se noutras direcções. Quando a estrada da Torre está aberta, viaja-se dentro do carro, mas quando a estrada da Torre está fechada, visitam-se aldeias que de outra forma permaneceriam fora do itinerário. Quando a estrada da Torre está aberta, as famílias despendem de alguns minutos de entretenimento – com bolas de neve e selfies – mas quando a estrada da Torre está fechada, as mesmas famílias optam por almoçar em restaurantes típicos. Quando a estrada da Torre está aberta, os carros entopem as vias de acesso, poluem, buzinam e trazem todo o urbanismo que lhes é atestado diariamente nas cidades, mas quando a estrada da Torre está fechada, os mesmos carros dispersam-se por toda a Serra, vislumbrando os montes, os vales, as fragas e os covões. Quando a estrada da Torre está aberta, o destino é só um, mas quando a estrada da Torre está fechada, abre-se um horizonte de possibilidades deslumbrantes de uma Serra que continua por descobrir.
A fauna e a flora saem gravemente prejudicadas pelas dinâmicas do turismo actual. A Conservação da Natureza não é tida em conta, o Património Natural está na iminência de uma degradação irreversível e o que é, efectivamente, natural, está sob constante ameaça por força das circunstâncias de visitação que continuam a ser alimentadas. A estrada para a Torre é um erro estratégico e um perigo para o desenvolvimento sustentável da Serra da Estrela. Infelizmente, continuará a sê-lo enquanto não se despertar – visitantes e visitados – para todos os malefícios e custos que a este tipo de turismo estão associados.
Naquele dia, descobrimos os caminhos pedestres que nos permitem alcançar alguns dos lugares mais belos da nossa Serra. Caminhámos num dia de Inverno solarengo sob um ambiente de entusiasmo e calmaria, onde as brincadeiras com a neve e as fotografias foram elementos secundários à nossa felicidade. Caminhámos satisfeitos, certos de que é este tipo de turismo que pode amplificar de forma sustentável a atractividade desta região, sendo o modelo do pedestrianismo a base turística para o qual a Serra da Estrela tem mais aptidões. A Torre é um pedaço de cidade que foi colocado no topo da Serra mais linda de Portugal e a passagem pelo seu ponto mais alto alimenta uma dinâmica supérflua que em nada dignifica toda a beleza que nunca se poderá medir em altitude.
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