2024-12-23
Palavras chave
inverno neve turistrela“Ao invés das pessoas virem à Serra da Estrela, a neve vai à porta das pessoas”. (1) Não se espantem, é mesmo isso que a Turistrela pensa fazer – se não neva na Serra, a alternativa é, então, levar a neve às pessoas.
É óbvio que é mais uma das muitas tiradas a que esta empresa já nos habituou, em particular,com neve, citando, “falsa”, dando a entender que tudo isto não passará de uma piada de mau gosto.
Com as dificuldades que o interior corporiza e para as quais tardam soluções, temos uma empresa monopolista que, como tem o principal compromisso de promover a Serra da Estrela, pretende, como podemos constatar, levar as pessoas para fora dela. Talvez seja pela quadra natalícia que a Turistrela se enche de solidariedade para com o país. Com a proposta de levar neve às pessoas, tipo porta-a-porta, o altruísmo da ideia está no impacto positivo que a medida pode provocar no turismo interno e na economia, esperando que com esta iluminada sugestão as cerca de 100 mil famílias que anualmente se deslocam para esquiar lá fora, deixariam de o fazer para se deliciarem nas pistas, para já, de Lisboa, Porto, e, vejam bem, do Algarve! Só fica por compreender os meios de contenção dos que procuram o esqui – com tanta controvérsia, não nos espantaria que lhes tenha passado pela cabeça exigirem um visto para quem quiser sair do país com o objectivo de esquiar lá fora…
Para já, é bom que comecemos a falar das coisas sérias com a seriedade que necessitam. E começando pela neve “falsa”, o que estão a querer dizer-nos é que a neve artificial é falsa neve, mas não. De facto, a diferença entre a neve natural e a neve artificial está no seu processo de síntese. A neve natural é gerada pela própria natureza, enquanto a neve artificial procura replicar, através de meios mecânicos (os chamados canhões de neve) com nucleadores para a formação de cristais de gelo projectados para a atmosfera em condições térmicas para se poderem manter.
Pensamos que terá sido um acaso que levou à descoberta do fabrico da neve artificial. Em 1940, no Canadá, um grupo de investigadores procurava estudar o efeito do gelo nos motores dos aviões a jacto. Durante as experiências, em temperaturas muito baixas, operando num túnel de vento para saber se o gelo se acumulava nos motores quando eram pulverizados com água, verificaram que do outro lado da turbina o que saia era nada mais que neve. Naturalmente, esta observação deixou os cientistas impressionados e, daí aos canhões de neve, foram as necessidades sentidas na escassez da neve a ditar a sua expansão. (2)
Não nos parece justo que uma empresa que transitou do domínio público para o privado – ainda estamos a tentar perceber como – com o propósito de dinamizar o turismo na Serra da Estrela, venha agora anunciar a venda de neve falsa para regiões como o Algarve, Lisboa e o Porto, em vez de promover a sua venda onde seria de esperar, na Serra da Estrela. É caso para dizer que o dinheiro, realmente, não tem pátria.
Esta notícia é reveladora do que a ASE sempre defendeu e mantêm-se as nossas convicções. Infelizmente, pouca compreensão temos recebido da parte de quem tem a obrigação de ter a mente e olhos bem abertos para a realidade que se vive na Serra da Estrela, em particular, com as políticas do turismo enraizadas na escola dos anos 60 (do século em que a neve até se deixava ver de uns anos para os outros em alguns lugares recônditos do Planalto Superior da Serra).
A falta de neve na Serra da Estrela é uma realidade que temos vindo a observar há longos anos. Profissionais desta matéria alertam-nos para o facto de podermos deixar de contar com a sua presença daqui a duas dezenas de anos. Apesar desses avisos, que se incluem no leque de assuntos sérios que devemos tratar com seriedade, preferimos olhar para o lado e ignorá-los. O que seria desejável, no entanto, era procurar alternativas em tempo útil, para que os impactos causados pela sua ausência não nos tornem a realidade ainda mais difícil.
Com a falta de neve natural, vamos ter menos água nas nascentes, nas lagos, nos cursos de água e, por mais que não consigamos, ainda, compreendê-lo, nas nossas torneiras também. É por isso que a aposta em construções a cotas mais elevadas só vai agravar este problema. Dificultar o trabalho de reflorestação à natureza, aguardando pela regeneração natural, oferecer-nos-á a mesma sequência de ciclos, repetindo-os. Matagais, cerrados, matas de pinheiros sem gestão (porque não há quem a faça) e temos o cocktail perfeito que o fogo tanto aprecia para nos deixar amargurados e inquietos, sem solução à vista.
Existem soluções para o turismo muito além da neve, basta que se reconheçam os valores subentendidos aos projectos que surgem em resposta às necessidades da região. Considerar as opções apresentadas pela ASE pode ser um bom ponto de partida, afinal de contas, a parceria com a nossa Associação terá sempre a garantia da Serra da Estrela em primeiro lugar. A solução para o problema da falta de neve não deve ser o relato de um conto de fadas, distanciando as pessoas da grande vítima desta história – a Serra. E é por isso que se Maomé não vai à montanha… a Montanha NÃO deve ir a maomé.
1. https://www.cmjornal.pt/cmtv/videos/detalhe/ao-inves-de-virem-a-serra-da-estrela-a-neve-vai-a-porta-das-pessoas-empresa-ambiciona-expandir-projeto-de-neve-falsa-em-portugal?fbclid=IwY2xjawHOq5tleHRuA2FlbQIxMQABHa2fjfdOZl41-sKLQMyOZAhJtVE-sWOF3GUCK9Z4xp9MQw8UjNfeS8-ETg_aem_4IQxtHh8BqbSrd4XmkiEbw
2. https://ullerco.com/pt-pt/blogs/noticias/neve-artificial-ou-natural?srsltid=AfmBOopWH9LIPdJ0gaioLlEQUiqScEkrNkn58si7NYjzHPLqwNQZviNI
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