Revista Zimbro
by Amigos da Serra da Estrela
 
Montanhista

2024-12-10

Liberdade e democracia

Liberdade e democracia

 

Palavras chave

campismo  viajar  
 

Não, não vou aqui falar de política. A Zimbro não seria o “lugar” mais adequado para o fazer. Mas na passagem dos 50 anos da 3ª República, não resisto em assinalar uma coincidência temporal entre a política nacional e a “política” doméstica em casa dos meus pais e avós. É que, em 1974, eu tinha 16 anos e foi exactamente nessa altura que ganhei a minha liberdade. Não foi uma carta de alforria, porque nem eu era escravo nem existe documento escrito. Mas foi esse o ano que larguei o ninho e comecei a voar sozinho pelos montes e vales do Norte e pelas planícies e falésias marítimas do Sul. Também, coincidentemente com o cenário nacional, essa liberdade não foi logo acompanhada de democracia plena (as primeiras legislativas, que consubstanciaram o regime democrático, só viriam a acontecer em 1976) e lá em casa, tal como os portugueses, só passei a ter  “voto na matéria” um par de anos mais tarde, quando decidi ir trabalhar, pagar as minhas contas e escolher o meu futuro. De qualquer forma, já iniciei as comemorações do cinquentenário deste importante período da minha vida com um retiro de introspeção no Douro, devidamente acompanhado da minha mulher, para me aquecer o corpo, e de uns excelentes tintos durienses, para me aquecerem a alma.

Isto tudo para dizer que foi no Inverno de 74/75, há 50 anos, portanto, que fui pela primeira vez à Serra da Estrela sem a protecção dos meus pais e avós que tantas vezes lá me levaram e tão bem me prepararam para essas “andanças”. A idade não me deixa recordar, com exatidão, o mês e os pormenores desta viagem, e os amigos com quem falei ainda estão mais esquecidos do que eu, pelo que só as (poucas) fotos da altura ajudam a reviver essa viagem. Arrisco dizer que foi nas férias do Natal de 74 ou no Carnaval de 75. Foi um fiasco! Mas daqueles fiascos que hoje recordamos com saudade e um sorriso nos lábios.

Aquela camionete alugada a uma empresa de viação, mais habituada a malas, cestos, trouxas e até animais de capoeira, nunca tinha visto tantas mochilas juntas. O Luís Filipe Baptista, grande impulsionador do Movimento Juvenil do Clube de Campismo de Lisboa (CCL) tinha convocado  jovens dos parques de campismo da Costa e de Almornos, e ainda outros que não alinhavam nos parques (que era o meu caso), e alugado a tal camionete para uns dias que prometiam ser de convívio, animação, passeios pela montanha e iniciação à escalada. Mas a Serra não estava lá muito pelos ajustes para com amadores e muito menos meninos(as) de parques de campismo.

Naquele tempo, viajar de Lisboa à Serra da Estrela era “aventura” para quase um dia inteiro, com passagem por Vila Franca de Xira, Mora, Ponte de Sor, Vila Velha de Rodão, Castelo Branco e Alpedrinha (havia uma alternativa pela estrada N118 que segue o Tejo até ao Gavião). A primeira paragem demorada foi em Castelo Branco para a bucha e para uma curta visita ao famoso Jardim do Paço Episcopal. Prosseguimos viagem, e era grande a ansiedade enquanto subíamos a Serra da Gardunha porque nos tinha sido dito que, do Miradouro da Portela, veríamos a Estrela pela primeira vez no itinerário. E assim foi, uma curva da N18, quase a 180°, mostrou-nos a bonita Cova da Beira e a Serra da Estrela em todo o seu esplendor (hoje, com as autoestradas e túneis, como o da Gardunha, já ninguém disfruta das nossas estradas nacionais e das “surpresas” que a velocidade nos rouba). Lá estava ela, coberta de neve e pronta para nos receber. A segunda paragem foi na Covilhã, para desentorpecer as pernas, tomar um café no “mui” saudoso Café Montalto ao seu estilo Art Deco, paragem obrigatória para montanheiros e esquiadores antes da subida à Serra (era um dos cafés icónicos de Portugal), e para o Luís Filipe ir, salvo erro, à Junta de Freguesia levantar a chave do… Sanatório dos Ferroviários. Não, não havia tuberculosos no grupo e o sanatório tinha encerrado uns 4 ou 5 anos antes. A ideia era, durante esses dias, fazermos nele a nossa base para as idas às alturas da Serra enquanto se estabeleceria um “acampamento de altitude” no Covão D’Ametade ou noutro local onde a neve e as condições atmosféricas o permitissem.

O ambiente dentro do sanatório era, simplesmente, gélido e tétrico. As paredes graníticas do gigantesco edifício abrigavam do vento e da chuva, mas conservavam e temperatura ao nível de qualquer moderno frigorífico “no frost”. As camas de ferro com colchões de espuma mantinham-se alinhadas ao longo de enormes enfermarias, como que à espera de novos inquilinos, e as arrastadeiras, escarradores, suportes para o soro, seringas de vidro e outros materiais de enfermagem, mais ou menos assustadores, lá continuavam prontos para torturar quem se atrevesse a invadir aqueles domínios. Nas casas de banho, as torneiras tinham secado (ou talvez estivessem geladas), as sanitas, com tampas de madeira a acusar já podridão, estavam inoperacionais, dos autoclismos metálicos pendurados nas paredes pendiam correntes de pequenos elos que, acionadas, mais não produziam que um som seco e as grandes banheiras de esmalte acumulavam já muita sujidade no fundo. Enfim, um perfeito cenário de pesadelo, digno de Hitchcock, para quem se propunha pernoitar. Mas pernoitámos… e durante as noites não se ouviram gritos reveladores da presença de fantasmas ou de terror entre os hóspedes (em boa hora o sanatório foi transformado numa bonita Pousada de Portugal que abriu portas em 2014).

A primeira manhã acordou fria, mas soalheira. O pouco e rudimentar material de escalada de que dispúnhamos  saltou das mochilas e, enquanto uns fizeram uma caminhada pelas redondezas ou cozinharam o almoço nos “Campingaz”,  o Luís Filipe levou outros, onde me incluí, para montar um pequeno rappel e fazer umas linhas de iniciação à escalada numas paredes vizinhas do sanatório. E por lá nos entretivemos durante esse dia a disfrutar o Sol e a magnifica paisagem sobre a Covilhã e a Cova da Beira, com a Serra da Gardunha e a Serra da Malcata como pano de fundo.

De acordo com o programa, o dia seguinte seria para subir até à Torre ou até onde a estrada estivesse aberta. Mas nuvens ameaçadoras no céu pareciam querer contrariar os nossos planos.  Contudo, não seria o mau tempo a dar o golpe final naquele dia. Várias raparigas, entre as quais a minha irmã Isabel e a Paula Cruz (que uns anos depois casou comigo… até hoje!), queixavam-se de mau estar, febre ligeira e apresentavam manchas vermelhas no rosto e no corpo. A camionete que nos iria levar à Torre foi desviada para o hospital da Covilhã, na altura situado à saída da cidade, já na subida para a serra. O diagnóstico foi imediato e conclusivo: rubéola. Sendo uma doença infectocontagiosa havia que separá-las do resto do grupo para o que as várias enfermarias até deram jeito (não é por acaso que tinha sido um sanatório). Mas as más noticias não ficariam por ali. A Guida, mulher do Luís Filipe, estava grávida da Filipa e nunca tinha tido rubéola nem estava vacinada. A rubéola não é uma doença particularmente grave, mas durante a gravidez pode provocar malformações e sérias complicações no feto e a Guida tinha estado em contacto próximo com todas as raparigas. A preocupação sobre a possibilidade de contágio passou a pesar sobre todos. Para a maioria do grupo foi o dia todo neste “filme”.

Parados no sanatório sem nada para fazer, eu, o Paulo Martins, o Camilo e o Pedro (julgo que só nós os quatro), decidimos meter mochila às costas, pés ao caminho e de braço esticado ao “auto-stop” (como diziam os meus avós) lá fomos serra acima. Como se toda a carga não bastasse, levava ainda pendurada uma viola que me acompanhava para todo o lado. O tempo foi piorando, levantou-se vento e o frio aumentava à medida que subíamos. E boleia… nada. Acabámos por fazer os 4 ou 5 Km que nos separavam das Penhas da Saúde a caminhar e, pouco depois de lá chegar, fechou-se um nevoeiro intenso sobre aquela encosta da serra e começaram a cair uns farrapos de neve. Não havia condições para continuar e resolvemos ficar mesmo por ali. O local escolhido foi um pequeno prado, aproveitado como campo de futebol (julgo que ainda existe), entre o Hotel da Torralta (agora Luna) e a casa abrigo do Clube Nacional de Montanhismo (só mais tarde me tornei sócio do clube; hoje essa casa está em estado de abandono).  Montámos as tendas canadianas “André Jamet”, na altura muito populares entre os campistas desportivos, e começámos a aquecer umas latas de refeições da “Sugal” e a derreter neve para preparar uma bebida quente. O nosso equipamento era quase inexistente a as roupas “térmicas” incluíam calças de bombazine, camisas de flanela e camisolas de lã daquelas que picavam mais do que palha-de-aço. Os sacos-cama, fraquinhos, tinham de ser reforçados com uma manta e nem isso nos livrou de uma noite enregelados.

Um vendaval daqueles à Serra da Estrela, fez a “barraca abanar” a noite toda. A manhã seguinte não estava melhor. Frio, vento e nevoeiro cerrado não nos deixavam grandes alternativas. O material de escalada continuou no fundo das mochilas e mantivemos as tendas montadas para nos servirem de abrigo durante a manhã. Sem comunicações com o resto do grupo (é bom lembrar que não havia telemóveis) decidimos desmontar as tendas e voltar à base, porque o regresso à capital seria no dia seguinte. Apenas por mero acaso, acabámos por ser encontrados e recolhidos pela camioneta que tinha subido até ali em nossa busca e para mostrar neve a quem nunca a tinha visto. Condenados a novo “internamento” no sanatório, lá passámos mais uma noite antes da viagem de volta ao aconchego dos nossos lares, ao vale dos nossos lençóis e, principalmente, a um muito desejado duche de água quente.

Esta minha primeira vez “em liberdade” na Serra da Estrela não teve grande história para contar nem “feitos” dignos de registo. Mas teve um mérito. O de dividir aquele grupo de jovens em dois subgrupos: Os que gostaram da actividade, compreenderam os humores da montanha, por ela se apaixonaram e voltaram sempre para percorrer as suas veredas, para escalar as suas paredes, para dormir com ela e para a contemplar qual crente que entra numa igreja e se fixa no altar, e foram vários. E os que não gostaram tanto, mas que, ainda assim, voltariam à Torre de carro, para mostrar a neve aos filhos e netos, fazer bonecos com ela, mandar bolas uns aos outros, escorregar em sacos plásticos e comprar queijos da serra e presunto de qualidade duvidosa nas antigas instalações da Esquadra nº 13 da Força Aérea Portuguesa, no ponto mais alto de Portugal Continental. Uns e outros foram livres de escolher e votar no estilo de vida que lhes pareceu ser o melhor. É a LIBERDADE… e a DEMOCRACIA, a funcionar.

 
 
 

 

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