2024-10-07
Palavras chave
desporto territorioAo contrário dos ginásios que são geridos de acordo com as regras que lhes garantem o uso adequado, na Serra da Estrela, que de natural já pouco tem, as regras são letra morta e cada um faz o que quer e bem lhe apetece.
Em Junho de 2023, cerca de 8.000 motoqueiros com as suas poderosas máquinas rodaram até ao ponto mais elevado do continente para assistir à celebração de uma Missa e à benção das suas motas. A celebração foi realizada pelo Bispo da Diocese da Guarda, D. Manuel Felício que, verdade seja dita, podia ter aproveitado a oportunidade para sensibilizar os organizadores a promover a cerimónia a altitudes mais baixas, onde não faltam excelentes lugares, como capelas e outras estruturas religiosas, com menos riscos para o meio ambiente e para a ecologia, por comparação à área mais sensível e problemática do Parque Natural da Serra da Estrela.
Pelo contrário, quando confrontados com as consequências da realização do evento na Torre, alguns participantes procuraram justificar os seus actos – “Se os outros o fazem, por que não podemos fazer também?”. Sabemos, no entanto, que é falacioso justificar os próprios comportamentos com as acções dos outros. Aliás, qual a lição a retirar desta decisão, se as preocupações ambientais da Igreja se reflectem pelo comportamento menos adequado dos outros. Por muito que o evento tenha sido acarinhado pelos milhares de motoqueiros, não deixa de se revelar num precedente muito grave, pois torna-se ainda mais difícil proteger uma área tão significativa do Parque Natural na presença de eventos organizados com esta amplitude. Gostaríamos de ver a Igreja defender o lado correcto da história. (1)
Nos dias de hoje, está visto que os madeireiros são Reis e Senhores, donos do poder, cortando e retirando a madeira ardida dentro de uma área protegida com o Estatuto que a Serra da Estrela tem, sem o mínimo respeito pelas regras que devem prevalecer. As consequências para as encostas, em resultado das suas acções, irão ser muito graves e irreversíveis. As centenas de rilheiras provocadas como se a Serra fosse “terra de ninguém”, vão aumentar e acelerar os processos erosivos, contribuindo para delapidar as encostas das terras que tanta falta irão fazer para dar suporte às plantas – estamos, por isso, perante um grave crime ecológico.
Não ecoaram os alertas que fomos deixando ao longo do tempo, salvo raras excepções, como a inquietação que vimos manifestada em momentos de aflição em intervenções públicas por parte de membros do Governo e Autarcas. Na prática, nada foi feito e as consequências vão sentir-se futuramente, bem como a alteração morfológica das encostas que, inevitavelmente, irão deformar-se, e para pior. Nada ficará como dantes e actualmente a situação encontra-se já num ponto quase irreversível, sem que haja recursos para compensar os danos que se podem encontrar. Notamos que os impactes causados pelas enxurradas no incêndio de 2022 geraram motivos de preocupação nos agentes da Protecção Civil da região de Aveiro, onde são observadas intervenções de emergência que procuram evitar danos maiores a vários níveis – erosão, qualidade da água, riscos humanos e materiais.
Do mesmo modo, a abertura de caminhos sem o mínimo rigor, com consequências nefastas para a gestão dos povoamentos, para o combate aos fogos e para a erosão, está a ser uma prática constante, sem que ninguém lhe ponha travão ou, pelo menos, corrija tais construções. Seria exaustivo descrevê-los, porque são muitos e sem utilidade para o futuro, porque não obedeceram a nenhum rigor técnico, salvo aquele que o manobrador delineou a seu belo prazer e conveniência.
A inacção ou falta de ousadia em proceder a melhoramentos dos povoamentos que quebrem a monocultura contínua de pinhais, não é nada mais do que a revelação da continuidade de manter a Serra da Estrela em contínuo risco de vir a desenvolver grandes incêndios. A regeneração natural é um interessante e importante meio de repor a vegetação e proteger os solos. Se a mesma não for gerida com a devida compartimentação através do plantio de outras espécies mais resilientes ao fogo, a tendência é que se agravem as ocorrências e com potencial para serem ainda mais dramáticas. Temos historial para não nos deixarmos dominar pela inactividade, porque o risco é uma realidade e os recursos humanos e materiais são cada vez mais escassos.
As zonas mais sensíveis da Serra da Estrela, aquelas que nos responsabilizam internacionalmente com o dever de a conservar – as áreas RAMSAR, são palco de travessias com motos e veículos TT, sem que nada os perturbe, onde não há sequer caminhos para circularem veículos. Se tal não acontecia há duas décadas (e agora sucede com muita frequência, mantendo-se a mesma legislação), alguma coisa aconteceu, a par com a orgânica do Parque Natural da Serra da Estrela.
Os trails, com milhares de praticantes, fizeram escola e continuam a desenvolver-se pelos locais que deveriam ser interditos a esta prática. A passagem constante pelas zonas de cervunais (que as muitas fotos dos próprios praticantes revelam), estão a provocar danos que aceleram a destruição destes importantes ecossistemas. O pisoteio muito concentrado leva à delapidação das gramíneas, deixando os solos mais frágeis ao processo erosivo, com autênticos canais de escoamento que levam, lá está, ao acelerar da destruição destes importantes ecossistemas.
O mesmo acontece com a escalada. A mesma é proibida, mas trata-se de uma proibição não controlada, que leva a que ninguém cumpra as regras estabelecidas a priori. Em vez disso, poderia procurar encontrar-se uma solução que satisfaça os praticantes, não colocando em causa a biodiversidade de importantes nichos. Os mesmos vão sendo destruídos sem que sejam feitos os estudos necessários para os proteger, conciliando, idealmente, a prática da escalada com as necessidades da biodiversidade. Se da parte de quem tem a responsabilidade de gerir as estratégias de conservação – neste caso, o PNSE – não há empenho na construção destas soluções, o resultado não pode ser pior, já que deixa de haver credibilidade nas instituições e cada um se satisfaz como lhe convém, sem se preocupar com a conservação dos locais onde desenvolve a sua actividade.
Já tínhamos alertado o movimento de escaladores e o ICNF para o risco de uma escalada desgovernada. Os escaladores, naquele que consideramos ter sido um acto de má fé, aproveitaram o conveniente do posicionamento da ASE para o integrar numa exposição que endereçaram posteriormente à Directora do PNSE. Nessa exposição, não foi incluída nem uma vírgula do que a nossa Associação tinha identificado como preocupante.
Receamos que o prazer da escalada é a principal e única motivação dos praticantes da modalidade. Tendo esta visão como ponto de partida, devia o ICNF aproveitar o potencial dos escaladores para desenvolver acções de sensibilização e inventariação, em vez de se fechar no seu casulo, optando pela inactividade. Esta atitude deixa ao Deus dará áreas únicas que ainda não foram estudadas e que estão a ser destruídas pela prática da escalada.
O estudo “Climbing route development affects cliff vascular plants more than subsequent climbing: A guide to evidence-based conservation management to regulate climbing”, publicado em 24 de Setembro de 2024, no Journal of Applied Ecology, vem confirmar a justeza das nossas preocupações. A ASE não pretende impedir a escalada, mas sim que os seus praticantes pensem na Serra em primeiro lugar. Interessante seria observar os praticantes de escalada a pensar na conservação da Serra da Estrela, em detrimento do uso que dela podem tirar. Deste modo, talvez fosse possível a sustentabilidade do Património Natural da região. (2)
Após a alteração da estrutura orgânica do PNSE para a co-gestão, assistiu-se a um frenesim multi-direccional de diferentes entidades, no sentido de avançar com projectos considerados como estruturantes para o desenvolvimento regional da Serra da Estrela. No caso da chamada “Estrada Verde”, o projecto terá sofrido um pequeno revés com o bloqueio de Manteigas às pretensões de fazer com que a estrada fizesse a ligação entre a Cruz das Jogadas e as Penhas Douradas, desviando, assim, o eventual trânsito que viria para a vila de Manteigas, para os concelhos limítrofes. A ex-Ministra Ana Abrunhosa chegou ao ridículo de considerar estruturante uma estrada que iria ligar os Municípios da Guarda, Gouveia e Celorico da Beira, quando todos sabemos que não será por esta via que os Munícipes destes concelhos se irão deslocar para chegar a qualquer um deles! Os Autarcas foram responsáveis por estender-lhe o tapete onde esta escorregou.
Tem razão Sérgio Costa, presidente da Câmara Municipal da Guarda, quando salienta que a “Estrada Verde” é desejada há cerca de 50 anos (pela Câmara da Guarda, dizemos nós). Na verdade, o que ele não disse é que a intenção da Guarda era ter uma ligação directa à Torre, ligando as Penhas Douradas à Lagoa Comprida. Ora, apesar do Distrito da Guarda ter mais de ¾ da área da Serra da Estrela, a pretensão da Câmara da Guarda de ambicionar uma estrada directa para a Torre nunca irá ser alcançada porque o território entre as Penhas Douradas e a Lagoa Comprida está integrado no concelho de Seia. Nenhum Senense iria perdoar que o seu Município permitisse que lhe desviassem o tráfego na Lagoa Comprida para o direccionar para a cidade da Guarda. Chamar a esta invenção algo de estruturante para a região é de quem não tem a mínima noção da realidade local. Para além de muitos outros interesses estarem subjacentes nesta estratégia, é um absurdo, para não dizer preocupante, que na cabeça dos autarcas o desenvolvimento da região esteja dependente desta via.
Os Serranos souberam, ao longo dos séculos, encontrar formas de coabitar com a Serra da Estrela, procurando resguardar-se da sua agressividade habitando, de uma maneira geral, à mesma altitude. Apenas as Penhas Douradas e as Penhas da Saúde, enquanto estâncias vocacionadas para o tratamento da tuberculose, em resultado dos estudos que o Dr. Sousa Martins fez, durante a 1ª Expedição Científica à Serra da Estrela, em 1881, por serem temporárias, não seguiram a regra dos aglomerados urbanos. O período libertário criado pelo 25 de Abril deu aso a que muitos covilhanenses transformassem as Penhas da Saúde num autêntico bairro de lata clandestino, situação que não aconteceu em mais nenhuma parte da Serra da Estrela. Pelo impacto que tinha (400 barracas, ilegais, representariam alguns milhares de votos) na votação autárquica, nenhuma gerência da Covilhã teve a ousadia de repor esta legalidade. Bem pelo contrário, deram alento à ilegalidade e até a praticaram, como ficou provado no Tribunal Administrativo de Castelo Branco.
No final de Setembro, o “país” rejubilou com a notícia da certificação da Serra da Estrela como destino turístico, pela Internacional Mountain Tourism Alliance (IMTA), sendo-lhe atribuído o selo de World Famous Tourism Mountain, na categoria Natureza, anunciada durante a Conferência Internacional de Turismo de Montanha e Desportos ao Ar Livre, que decorreu na China, na cidade de Guiyang onde está sediada a organização. (3) De acordo com as notícias, a candidatura, foi liderada pela RUDE – Associação de Desenvolvimento Rural, com o apoio dos municípios da Serra da Estrela, da Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela, do Estrela UNESCO Global Geopark e do Turismo do Centro.
A Internacional Mountain Tourism Alliance (IMTA) é uma Associação sedeada na China e os seus membros ligados aos equipamentos desportivos, desportos e turismo de montanha. Tem cerca de 200 membros, oriundos de 34 países. Da Ásia, contam-se 154, sendo os restantes membros dos outros continentes. A única Associação portuguesa filiada é a RUDE, com sede na Covilhã, cuja descrição, no site da IMTA, passamos a transcrever:
“A RUDE é uma das mais importantes associações rurais portuguesas, juntando instituições privadas e públicas, empresas, criada em 1992 cujo principal objetivo é gerir projetos com o apoio de fundos europeus em Portugal e em toda a Europa. A RUDE também atua em projetos coletivos de áreas de montanha, nomeadamente no que diz respeito à promoção de produtos turísticos e novos sistemas de valorização do potencial natural, no que diz respeito à energia, água, produtos biológicos agrícolas, centros de armazenamento de dados.”
O presidente da RUDE é Carlos Pinto que, enquanto presidente do Município da Covilhã, também desempenhou o cargo de presidente da Associação Europeia dos Eleitos de Montanha (AEM). O que conhecemos da sua intervenção em defesa e promoção da Serra da Estrela foi ter permitido a construção de mais de 6 dezenas de casas de madeira de origem nórdica que, no Tribunal Administrativo de Castelo Branco, ficou provada a sua ilegalidade. No entanto, as construções mantêm-se. Elegeu as Penhas da Saúde a Aldeia de Montanha e, agora, a candidatura que recebeu a descrita distinção.
Para os que cuidam, defendem e a estimam a Serra da Estrela enquanto espaço natural, o estado actual desta região oferece inúmeros motivos para uma preocupação crescente. Aliás, se a Serra já apresentava sinais de uma certa decadência provocada, com o anúncio do que aí vem, ela nunca mais será a mesma.
Referências
https://seiadigital.pt/2024/06/18/bencao-das-motos-junta-mais-de-7500-motards-na-torre/
https://besjournals.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1365-2664.14785?sfnsn=wa
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