Revista Zimbro
by Amigos da Serra da Estrela
 

2024-05-06

Portugal no coração

Portugal no coração

 

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O passeio nas montanhas com um impacto enorme na minha vida.

Em 1981, ainda jovem, estudante de Direito, viajei de comboio por Portugal de Sul para Norte, era aonde os comboios me levavam. Quando chovia em Coimbra entrava de novo no comboio rumo a Norte, e foi assim que encontrei um luxemburguês que me falou da Serra da Estrela.

Na vida, muita experiência vem por acaso, pela sorte. Cheguei com duas moças alemãs, que também viajavam sem plano definido, em Manteigas. Ouvi no Turismo que ia haver um passeio de jovens nas montanhas que ia ter lugar uma semana depois. Regressei para Manteigas, pus a minha mochila verde na porta do posto de Turismo, e inscrevi-me.

Tenho de explicar que na altura falava muito pouco português, tentava no mercado e nas lojas com algumas palavras e a reação era tão positiva quando alguém se esforçava para falar em português, achei muito acolhedor. Não dava para nenhuma conversa normal, e no passeio quando subimos da aldeia pela floresta, foi a Ana Catarina que me indicou onde haveria de encontrar um cajado – não havia o equipamento avançado que toda a gente agora usa – e se ofereceu como interprete.

Chegando acima das árvores, foram as formações rochosas que me impressionaram. E ainda mais o facto de haver pequenos poços e correntes de água que ficaram desde o degelo, água que se podia beber sem filtrar. Percebi que Portugal, sendo na parte mais ocidental da Europa, e a Serra da Estrela a zona mais elevada, a chuva não era tão poluída como na Holanda.

A liberdade que havia, e que ainda existe, de fazer passeios fora de qualquer caminho, de acampar onde se quisesse – sem deixar lixo, claro – achei muito atraente. Nos anos seguintes, voltei algumas vezes de comboio partindo de Amesterdão, chegando após 24 horas, cedo de manhã em Guarda, ia para Manteigas para subir sozinho e fazer campismo selvagem por algumas noites. A minha mochila verde tornou-se um sinal: “o holandês está de volta”.

Tudo isto resultado do famoso passeio de 1981. A rever as minhas fotografias a preto e branco e a cores, noto que tirei poucas dos participantes. Só a Ana Catarina aparece mais vezes. Não só porque me concentrei na fotografia da paisagem, mas também – tento perceber – porque não conhecia nenhum dos outros participantes antes do passeio. Lamento agora, mas o passeio era uma experiência única. O Zé Maria, o médico de Manteigas e a senhora do Turismo lideravam o grupo.  O acampamento perto da Lagoa Comprida, lembro-me muito bem, onde lá perto havia uma lagoa natural com água límpida e rochas que reflectiam na água: um sítio mítico.

Manteigas nestes anos, poucos anos depois de 25 de Abril, ainda era uma aldeia sossegada, onde no Verão as famílias que lá tinham raízes, habitualmente voltavam. Havia uma clara divisão entre os de Manteigas, e os ex-emigrantes que construíram casas e negócios na entrada da vila. Havia poucos turistas, muito menos hotéis do que actualmente. Não havia, fora da pousada na estrada para as Penhas Douradas, nenhum hotel de luxo das cadeias que agora se instalaram em Manteigas. Todavia, acho que para o montanhismo não mudou tanto que o aspecto turístico da vila deixa crer. A maior parte dos portugueses limita-se ao turismo de estrada e sobem para a Torre de carro, tal e qual como era em 1981. Deixam as montanhas para quem mesmo gosta!

Em 1985 participei numa 2ª caminhada no lado de Unhais da Serra. Encontrei mais fotografias dos participantes deste passeio. Em 1985, havia uma noite com o rancho folclórico de Unhais da Serra, com tambores impressionantes. Muitos dos jovens trouxeram instrumentos musicais, e gostei muito da atmosfera de camaradagem à volta da fogueira.

Ainda não expliquei o impacto grande, um impacto decisivo, na minha vida. Depois da caminhada de 1981 tive de voltar para Holanda, o meu passe Eurorail estava a acabar, não ia chegar à Holanda com este passe. Recebi uma boleia no carro da mãe da Ana Catarina, se a minha memória não me engana, era um 2CV ou Dyane, com o Zé Maria e mais alguém, para Vilar Formoso. Saindo de Portugal, apareceu-me a ideia de que seria possível escrever a minha tese de licenciamento sobre a Constituição de Portugal. Regressei no Inverno deste mesmo ano, visitei a Assembleia da República. Era o primeiro dia de trabalho de 1982, e os deputados ainda estavam a trocar prendas entre eles, mas consegui entrevistar deputados do PS, PSD, e Vital Moreira, que era nesta atura deputado do PCP. Levaram-me para o sótão do parlamento, onde havia o arquivo. Regressei para a Holanda com todos os Diários da Constituição, os projetos de revisão constitucional de 1982 e as decisões da Comissão Constitucional (o predecessor do Tribunal Constitucional): vários quilos de documentos, que de regresso na Holanda lia alínea por alínea, com um dicionário ao lado, aprendendo a língua portuguesa da Política e do Direito. Faltava alguma coisa para uma conversa normal. Em viagens seguintes visitei o Prof. Jorge Miranda, na Católica, e em Coimbra encontrei-me com o Professor José J. Gomes Canotilho, com quem estabeleci um contacto que ficou três décadas enquanto eu estava responsável para um capítulo sobre Portugal, num Manual de Direito dos Países da União Europeia, publicado na Holanda. O tratamento “VIP” no Parlamento e a recepção calorosa pelos mais eminentes constitucionalistas portugueses, ainda mais reforçaram a minha ligação com o país.

Em Amesterdão comecei a frequentar o clube dos migrantes portugueses e havia também alguns filhos de migrantes, a 2ª geração, que entraram na universidade e viviam na mesma casa estudantil. Casei-me e separei-me de uma portuguesa e moçambicana.

De 1992 até 2022, a minha vida profissional não me deu a oportunidade para visitar a Serra da Estrela. Quem trabalha nas Nações Unidas, não tem tempo para passeios nas montanhas. Muitas vezes, no Verão, era uma mudança de um país para outro e novas funções. De 2009 até 2017, trabalhei em Angola, com a UNICEF, e depois, voltando para o ACNUR, de novo, na capacidade de Representante do Alto-Comissariado para os Refugiados. O último posto com o ACNUR era em Moçambique, mais uma vez, representando a Organização de mais alto nível.

Foi por via da revista “Fugas”, do Público, que me reconectei com o Zé Maria. Num artigo sobre a Serra da Estrela, vi o seu nome, que reconheci, e depois foi fácil de o encontrar através do Facebook. Comprei uma tenda nova e acampei no Parque de Campismo Rural Vale do Beijames.

A flexibilidade que gostei tanto viajando com o Eurorail, podendo aproveitar as oportunidades que se abriam, como o passeio na Serra da Estrela, ajudaram-me muito no meu trabalho para o qual a flexibilidade era uma das mais importantes qualidades.

Que um dia me ia aposentar em Portugal era claro para mim.

Tenho Portugal no coração.

E desde que “troquei” uma válvula aórtica no Hospital CUF, no Porto, isto é verdade também de uma outra maneira muita concreta e real.

 
 
 

 

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