Revista Zimbro
by Amigos da Serra da Estrela
 
Montanhista

2024-05-06

A Herança

A Herança

 

Palavras chave

herança  
 

A herança mais preciosa que recebemos dos nossos pais e avós, não é a dos bens materiais nem a das contas bancárias. Esses são efémeros e, não raras vezes, desbaratam-se em pouco tempo. A herança que, de facto, nos marca para a vida, acompanha toda a nossa existência e determina aquilo em que nos tornamos é a dos valores, da tradição, da cultura, das vivências e das memórias que delas resultam, mas também das paixões e dos sonhos. 

Sou oriundo de uma família toda ela com raízes na capital, alfacinhas de gema, que vivendo na Lisboa de um craveiro numa água-furtada, não resistiu ao chamamento da natureza e começou a procurá-la, quer ao longo de todo o nosso litoral, quer nas montanhas e aldeias do interior. Avós, pai e tia, ainda nos anos 40 do século passado, em pleno rescaldo da guerra mundial, foram pioneiros do chamado “campismo desportivo”, antes da “era” dos parques de campismo, e percorreram, em longas caminhadas de mochila às costas, paisagens como o infindável areal de Troia a Sines,  a costa de um Algarve que nós já não conhecemos, as grandes travessias da Amarela e do Gerês, ou ainda as alturas dos Hermínios por veredas milenares usadas pelos pastores, e tantos outros caminhos e lugares que eu viria a redescobrir muitos anos depois.

As tendas eram feitas pela minha avó numa velha máquina Singer (que ainda tenho) segundo cortes e modelos que lhes chegavam de França pelas revistas do “Au Vieux Campeur”, muito “à frente” para a época, as camisolas e meias tricotadas em lã, as roupas adaptadas a partir do que havia em casa, as botas com protectores e cardadas pelo sapateiro lá da rua, para evitar o desgaste rápido das solas nos trilhos de montanha, e uma pequena máquina fotográfica de fole, que tirava fotografias minúsculas, acompanhava normalmente o grupo. No princípio os deslocamentos faziam-se de comboio e camionete de carreira, depois de moto e, finalmente, com um heróico Renault 4CV “Joaninha” que havia de durar até aos meus dias e que tinha mais histórias para contar do que os meus carros todos juntos. 

Desses tempos, guardo um álbum de fotografias e postais cuidadosamente compilado pelo meu saudoso avô, um autêntico relicário de memórias que conservo com muito carinho, onde fui “pescar” algumas imagens para ilustrar esta herança que aqui partilho. Na primeira, de 1949, aparece o grupo de montanheiros durante a travessia da Serra Amarela, do Lima ao Homem (entre o Lindoso e a Mata de Albergaria), guiados por um pastor, o único  que troca a mochila por um cajado, num trajecto que penetrava ligeiramente em território espanhol iludindo as patrulhas dos Carabineros e a nossa Guarda Fiscal. Outra, também do fim dos anos 40, é uma “deliciosa” imagem, captada no Gerês e mostra a família (meus avós, pai e tia) com mochilas de lona e armação de verga, uma delas com o emblema do velho CCL (Clube de Campismo de Lisboa), e as tais botas e sapatos cardados e com protetores. Por último, um postal da nossa Serra da Estrela, mostrando a sempre bela Manteigas coberta por um manto de neve, enviado pelo meu avô à minha avó nos anos 50, e que reza assim no verso: “Manteigas, 6ª feira, 13 de Agosto de 1954/ Natércia, pela Serra da Estrela sem novidade cá andamos gozando esta imensidade medonha mas bonita; é emocionante andar por cima das nuvens como nunca julguei; ficámos esta noute em casa de um guarda florestal porque havia mau tempo e muito nevoeiro./ Beijinhos deste que não te esquece um momento, Manuel”.

Serra do Gerês (fim do anos 40). Da esquerda para a direita, avó, tia, pai e avô

Mas mesmo quando não estavam a viajar, que a vontade era muita mas a carteira curta, não deixavam de sair da cidade e procurar o ar livre sempre que possível. Para o Verão, construíram, com as suas próprias mãos, uma cabana de madeira  na praia da Trafaria que na altura mais não era do que uma pequena comunidade piscatória. Chamaram-lhe MANAJUCA (“MA” de Manuel, meu avô, “NA” de Natércia, a minha avó, “JU” de Julieta, minha tia, e “CA” de Carlos, o meu pai). E ali passavam muitos fins de semana na praia, ora pescando, ora comendo as lulas que davam à praia decapitadas pelos golfinhos, ora convidando amigos para grandes noites de cantigas, fados e guitarradas à roda de uma fogueira na praia, sendo também uns dos precursores dos chamados “fogos de campo”. Quando o frio chegava, refugiavam-se num casebre que alugaram, durante umas duas décadas, na Malveira da Serra, no sopé da Serra de Sintra, por onde faziam as suas caminhadas, com o Guincho à vista. Na altura não passava de uma pequena aldeia, onde a electricidade e a água canalizada ainda não tinham chegado. Eu ainda conheci esta casa nos anos 60 e lembro-me que as primeiras coisas que os meus avós faziam quando lá chegavam era ir à fonte buscar uns cântaros de água para beber e para os banhos, que se tomavam numa grande banheira de zinco, e encher os candeeiros a petróleo para nos alumiar quando a noite caía. O ambiente era tão romântico e irrepetível que jamais o esqueci e continua a encantar-me. Hoje guardo os candeeiros a petróleo que de lá vieram, a talha de barro, linda, onde se punha a água para beber e cozinhar, a velha mesa e cadeiras da salinha e outros pequenos objectos, velharias que pouco valem, mas com um incalculável valor estimativo para mim.

Postal de Manteigas enviado pelo meu avô à minha avó (Agosto de 1954)

E foi neste ambiente que, no fim dos anos 50, eu vim ao mundo, foi neste espírito que eu cresci, é com estas memórias que eu tenho vivido, apaixonado desde então, e é esta a minha grande herança. A minha primeira viagem foi à Serra do Gerês, em Agosto de 1958, tinha pouco mais de 3 meses, e à falta dos “Rolls Royce” para bebés que hoje existem, fui numa alcofa. Não que tenha memória desses dias, mas porque assim me conta o tal álbum de fotografias do meu avô. Pelos vistos, teríamos andado pela Mata de Albergaria, por Vilarinho da Furna e pelo posto fronteiriço da Portela do Homem. Voltei depois, várias vezes, com avós, com pais e com tios e tive o privilégio de, ainda rapazito, ter conhecido Vilarinho da Furna com vida, guiados pela filha do Guarda Florestal Ferreira, lugar de onde guardo muitos pormenores como a ponte romana, as ruas estreitas, as casas em granito e os animais a descerem à noite da montanha e encaminharem-se sozinhos para os seus currais; lembro-me também de ter ido às Minas dos Carris, nessa altura ainda intactas, e fazer a caminhada a partir do momento em que a estrada, ainda em condições razoáveis, não deixou avançar mais o Triumph 2000 do meu tio. 

A Serra da Estrela, mais próxima, era a que visitávamos com mais frequência. A primeira recordação que tenho, é de um Inverno em que chegámos com os carros ao túnel da estrada da Torre e o caminho encontrava-se interrompido a partir dali. O dia estava bonito, havia muita neve fofa e o meu pai e alguns amigos, que conheciam razoavelmente a serra, decidiram meter pés ao caminho e subir a encosta que dali leva ao Covão do Boi para depois tentar chegar à Torre. Eu, ainda criança, fui seguindo os degraus abertos por eles na neve, sem crampons, sem piolet e sem estar encordado, enfim, uma loucura do meu pai, mas acabaria por não chegar lá. A visão dos carros pequeninos lá em baixo na estrada e a neve cada vez mais gelada e escorregadia, assustou-me e acabei por descer com um dos “aventureiros”, o que também não se revelou tarefa fácil. O meu pai e os outros regressariam umas horas mais tarde, depois de chegarem à Senhora da Boa Estrela, seguindo o trajecto da estrada. Nesse ano, à falta de material adequado para acampar na neve, ficámos alojados na Pensão Lusitana, hoje sede do Parque Natural da Serra da Estrela, que se vê em primeiro plano no postal de Manteigas que mostro acima, e foi lá que eu insisti, com sucesso, para que o meu pai comprasse um cachorrinho Serra da Estrela, tipo bolinha de pêlo, que se viria a tornar num grande cãozarrão: o Tufão. Voltei muitas vezes, de Verão e de Inverno, a Manteigas, de onde o meu pai havia de trazer a Faia, fiel companheira do Tufão até ao fim dos seus dias, mas também ao Covão D’Ametade, às Penhas da Saúde, às Penhas Douradas, e a outros recantos da serra onde se pudesse armar uma tenda e ter um riacho por perto para nos refrescarmos. 

E continuámos, os meus avós, os meus pais, eu e a minha irmã Isabel, a percorrer o país do Minho ao Algarve (numa altura em que ainda podíamos acampar sozinhos numa praia algarvia) mas sempre “dentro de portas”. A primeira vez que me lembro de ter passado a fronteira, o que era complicado para um adolescente a uns anos de cumprir o serviço militar, foi, como muitos outros portugueses, a Badajoz, para comprar caramelos “El Caserio” e outros “regalitos”, beber uma Coca-Cola (que por cá era proibida) e comer uns calamares. E resume-se a isso a história da minha primeira ida ao “estrangeiro”.  Hoje, continuo a percorrer a nossa Terra, continente e ilhas, com um calendário quase sagrado de “peregrinações” anuais à Serra da Estrela, a Montezinho, ao Minho, ao Alentejo, à Costa Vicentina e ao Douro, a minha última paixão. Sempre com uma inequívoca prioridade a todos os pedaços deste Portugal que amo, acabei por não resistir a alargar os horizontes e partir à descoberta dos 7 continentes, para o que muito contribuíram os meus 15 anos ao serviço das Nações Unidas. Mas isso são outros mundos, e outras montanhas, que não recebi de herança. 

Os “famosos” caramelos “El Caserio” que o “tuga” ia comprar a Badajoz

Resta dizer que, como em tudo na vida, riqueza gera riqueza. Ora eu, que já era riquíssimo, fruto deste legado recebido dos meus pais e avós, à minha herança juntei a da minha mulher Ana Paula, também ela oriunda de uma família de amantes do ar livre, do campismo e do montanhismo, filha do Carlos Cruz, um histórico dirigente do Clube de Campismo de Lisboa e da Federação Portuguesa de Campismo, e trouxe como dote para o casamente um enorme baú  repleto daqueles valores de que falei no princípio. Já levamos quase 50 anos a caminhar juntos e a gastar esta fortuna que, ao contrário dos tais bens materiais e “tilintantes”,  tem a grande vantagem de ser inesgotável. Ainda hoje, com o caruncho do osso a entrar nas colunas, joelhos, pés, ombros e outras paragens do esqueleto, lá vamos arranjando coragem para continuar a percorrer a Nossa Terra de Norte a Sul e as longitudes e latitudes do Mundo, do Faroeste ao Sol Nascente e do Ártico à Antártida. “Enquanto houver estrada pra andar/ A gente vai continuar/ Enquanto houver estrada pra andar” [Jorge Palma].

Eu e a minha mulher, num estranho “bailado” de patinagem artística de altitude no gelo,
no Covão Cimeiro, com o Cântaro Magro em fundo (1978?)

O dia nasceu lindo, a compensar uma Primavera que tardava em se afirmar. Saí da minha casa em Constância e fui caminhando ao longo do Zêzere que traz até à minha porta as águas lá de cima dos Covões da Clareza, Cimeiro, d’Ametade, mais de 200 quilómetros percorridos e transpostas as barragens da Bouçã, Cabril e Castelo de Bode.  Com as águas cristalinas vêm estórias, memórias e saudades. As papoilas vermelhas, as estevas brancas, os malmequeres amarelos, as urzes lilases e outras florzinhas que de repente aparecem para encher a natureza nesta altura do ano, ajudam também na inspiração. E segui a vereda, ridiculamente falando para o gravador do meu telemóvel enquanto caminhava, para depois compor este texto que vos trago. Que me importa a  mim o ridículo?! Afinal, estava sozinho. Eu, o rio e a minha Herança. 

 
 
 

 

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