2024-01-03
Palavras chave
caminhadas montanha montanhismo zezereCorria o mês de Dezembro de 2013, quando o Rogério Morais desafiou um grupo de amigos, que costumavam juntar-se na montanha e fazer umas escaladas nos idos anos 70, para montar um acampamento de fim de semana na Praia da Ursa, ali mesmo em frente à pedra do mesmo nome e à Noiva, perto da ponta mais ocidental da Europa. A eles juntaram-se alguns que vinham já dos anos 60 e outros, mais jovens, que se iniciaram nestas lides nos anos 80 e até mais recentemente. Nascia assim o grupo dos Históricos da Montanha em Portugal e a ideia de se realizarem encontros anuais, com “históricos” ou menos “históricos”, mas, sobretudo, com amantes da montanha. E assim continuamos até hoje, apenas como um grupo de amigos, sem dirigentes, sem estatutos, sem constituição como clube ou associação e sem filiação federativa. Um grupo de companheiros, como será mais apropriado chamar nesta actividade, que se vão juntando todos os anos (só em 2020 o Covid impediu a realização do encontro) com meia dúzia de “carolas” que se voluntariam para organizarem estes eventos. Todos são bem vindos, o grupo tem vindo a engrossar e temos contado com uma participação média de 50 a 60 montanheiros. Lá no Norte, sob a batuta do saudoso grande montanheiro Rogério Caldeira, que tivemos o prazer de homenagear num encontro na Serra da Freita, havia já um grupo de “Veteranos” que se ia reunindo com alguma regularidade e espírito idênticos.
Este ano voltámos à Serra. E lá para a capital, quando dizemos só “Serra”, não é preciso acrescentarmos mais nada: é à Serra da Estrela que nos referimos. A Serra que nos conta tantas histórias e donde todos nós temos tantas estórias para contar. E voltámos pela terceira vez ao Parque de Beijames, depois de 2017 e 2019, onde somos sempre recebidos de forma excelente e entusiástica pelo Zé Maria. O local tem um misto de serrano, a trazer-nos lembranças dos tempos em que cravávamos as estacas das nossas tendas no Covão d’ Ametade, na Candeeira ou na garganta de Loriga, mas também de acolhedor, pelo aconchego que o espaço de convívio do parque proporciona aos montanheiros que ali se reúnem à noite para trocarem memórias antigas ou porem a “escrita em dia” sobre aventuras mais recentes, antes de recolherem às tendas, montadas em tapetes de erva espontânea, ou às choças às quais recorrem os menos afoitos, não vá lá vir um nevão ou um desses novos “rios atmosféricos”.
[Fotografia de capa: Subida na Vereda do Poço do Inferno]
O objectivo do primeiro dia do encontro era a zona do Poço do Inferno, um nome injusto para um local tão paradisíaco. Alguns tinham já assentado arraiais no dia anterior em Beijames, outros levantaram-se cedinho e puseram rodas ao caminho abordando o local segundo vários “eixos de aproximação”: uns pelo “eixo Covilhã” que levaram com a nova atração turística dos “semáforos do Zêzere” (o Rogério foi o padrinho que deu este nome); outros tentaram, com mais ou menos êxito, a estrada de terra batida que sobe a encosta Sul a partir de Verdelhos; finalmente, outros, mais convencionais, não hesitaram em tomar o “eixo Manteigas”, estrada alcatroada, que os carrinhos são para poupar. Houve ainda um que se aventurou a pé a partir de Verdelhos… só o voltamos a ver à hora do jantar. Eu já tinha feito, acho que na minha “vida anterior”, a vereda que contorna o Poço do Inferno pela parte a montante da Ribeira de Leandres, mas nunca tinha completado este trilho que teria sido marcado mais recentemente. Vale a pena. E é sempre gratificante, para quem se empenha na organização destes eventos (o reconhecimento foi feito pelo Jorge Matos, que lá foi duas vezes, e pelo Álvaro Lourenço) ver um grande grupo seguir em fila indiana encosta acima, salpicando o verde da Serra com as cores garridas das vestes e equipamentos. Passámos por recantos bonitos, e lá no alto parámos para aconchegar os estômagos, uns com direito apenas a umas barritas energéticas e outros a quem só faltou trazer o fogão a gás para aquecer a merenda. Depois da foto de grupo junto a uns enormes penedos de granito, começámos a descida pela vereda da Cabeça do Pato, aberta há uns anos pelo Zé Maria, e embrenhámo-nos de novo no bosque percorrendo um trilho maravilhoso que nos conduz ao cimo do Poço do Inferno. Os vermelhos e amarelos outonais iam já dando lugar aos castanhos que anunciavam o Inverno e os musgos forravam de verde as pedras dos caminhos que pisámos. Por entre as árvores, descortinávamos, a espaços, o Vale do Zêzere, pintado a cores de mistério, com as quais o cair vagaroso do dia o vai envolvendo. É o encanto da Serra da Estrela que nem a chuva se atreveu a quebrar nesse dia.
À primeira luz do dia, abri a portada da janela do quarto, num simpático alojamento local da zona. Lá fora, um espesso manto de geada cobria de branco toda a várzea do Zêzere e, entre a neblina matinal, o céu mostrava-se azul, sem nuvens, a prometer um dia soalheiro. Já devo ter ido ao Covão D’ Ametade umas centenas de vezes. Mas cada vez que ali entro e se abre perante mim aquele presépio de três figuras graníticas, emociono-me. É um dos recantos mais encantadores de Portugal e dos mais belos que conheço no mundo. Passado o túnel de arvoredo que abraça o Zêzere, o grupo seguiu pela vereda que leva ao Vale da Candeeira, o destino para o nosso segundo dia do encontro. Passamos junto às Amarelas, dois blocos de rocha amarelada, muito utilizadas antigamente para treinar artificias em ligeiro subprumo e, de seguida, ao cimo da Fraga de Albergaria, que os escaladores passaram a chamar de “Fantasmas”, vá-se lá saber porquê? Talvez porque a mancha de rocha branca estampada na montanha assuste quem passa na estrada em noites de Lua Cheia? Continuamos pelo trilho, sempre com os Poios Brancos a observarem-nos do outro lado do vale, e passamos o cruzamento para a lagoa que o Cântaro Gordo foi enchendo a seus pés, mas, desta vez, não fomos até lá. Sob a batuta do Siggi Matos seguimos um trilho por ele aberto que nos leva a uma magnifica varanda sobre o Vale da Candeeira. E foi sob a luz de um Sol radioso, sem que fosse necessário recorrer à tal candeeira que os antigos, pastores e agricultores, provavelmente usariam para alumiar aqueles caminhos serranos, que descemos o vale até chegarmos à ribeira que corria serena, antes de se despenhar sobre o Zêzere. É aqui, neste local encantador que já viu alguns acampamentos de montanha, que o Siggi tem desenvolvido um projecto muito interessante nas turfeiras e prados adjacentes ao leito da ribeira. Explicou-nos, em detalhe, técnicas expeditas de retenção de águas e de plantio de árvores em altitude ao que se seguiu a prática dessas técnicas com a construção de uma pequena barragem com estacas de madeira e giestas entrelaçadas e a plantação de algumas árvores de espécies adaptadas aquele terreno, à altitude e ao clima Serra da Estrela em particular. Regressámos ao Covão d’Ametade pelo mesmo caminho, porque a volta pela Lagoa da Paixão (também conhecida por Lagoa do Peixão) e Cântaro Gordo é longa, parece estar muito obstruída pelo giestal e a luz do dia começou a despedir-se a horas de Inverno. Á noite, esperava-nos um jantar de todo o grupo no local do costume, o Café Dan em Verdelhos, primorosamente organizado pela Susana Gomes e, desta feita, a Tatiana presenteou-nos com uma chanfana memorável, daquelas que recordaremos mesmo para o resto da vida. A fechar a festa, o António Sousa deu-nos música com o seu acordeão, que também já faz parte dos encontros dos Históricos.
O Domingo foi dia de regresso a “quarteis”, não sem antes aproveitar a manhã para mais uma caminhada curta. Eu não compareci porque a minha parelha, que há quase 50 anos me acompanha nestas andanças, estava lesionada num pé. Mas o Carlos Serra mostrou ao grupo um pequeno troço de ligação à Rota das Faias, que foi a escolhida para rematar o encontro. Houve ainda 19 montanheiros que aderiram e, segundo me foi reportado, o nevoeiro apagou as fabulosas vistas a partir da Capela de São Lourenço e da torre de observação de incêndios, mas, em contrapartida, emprestou ao troço das faias, já meio despidas, um ambiente de encanto e mistério. Como isto não vai lá com barras energéticas e sandes, e já havia um défice de calorias no corpo, lá se teve de deitar abaixo mais um almocito num restaurante da zona, porque importa também contribuir para a economia local.
O Santos Vieira, um dos fundadores do grupo, “histórico” dos anos 60 ainda no activo e em grande forma, infelizmente teve de cancelar a ida à Serra em cima da hora. Foi ele que, inspirado no Cântaro Magro, criou o mais belo cartaz dos até agora desenhados, num traço e tons “vintage” que tem tudo a ver com os Históricos e com a Serra da Estrela. Vai certamente ser adoptado como o nosso poster “oficial”. E foi a Paula Martins (ou Paula Cruz, para os ainda mais “históricos”), que depois de múltiplos contactos e trocas de correio, postal e virtual, com uma das duas fábricas de lanifícios de Manteigas, “roubou” o emblema ao Santos Vieira e conseguiu que o reproduzissem, em tons de azul, no tecido feito a partir de lã de ovelha, tão serrano e tão único, usado por pastores e outras gentes das montanhas desde tempos ancestrais: o burel.
Cumpriu-se mais um Encontro dos Históricos da Montanha em Portugal na “nossa” Serra da Estrela. Voltaremos. Voltamos sempre, numa peregrinação reiterada a este “templo sagrado” onde praticamos o culto da montanha. É isso que nos une. Por agora, dizemos “É só até à vista, irmãos”, como ditava a velha “Canção da Despedida”, tantas vezes entoada à volta de um “fogo de campo” nos acampamentos desportivos e de montanha.
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