2023-12-06
Palavras chave
turismoPT
O turismo em áreas montanhosas e interiores, frequentemente, baseia-se na ideia contemporânea de que esses territórios estão fora do tempo, preservados num passado idílico. Mas estes territórios têm uma história a destacar, que é a outra face da moeda da atual situação de crise do modelo urbano: uma história de decisões políticas e de estratégias económicas de urbanização e de centralização.
De facto, as estratégias e decisões políticas aqui referidas, conduziram à marginalização actual, caracterizada por um fraco acesso aos serviços (saúde, educação, transportes), baixos níveis de rendimento e de produtividade, abandono progressivo e envelhecimento da população, e vulnerabilidade ambiental. Se a relação entre as cidades e os territórios do interior, ou de montanha, têm sido uma história de extractivismo e desigualdades, agora, parece assistir-se a uma tendência de valorização através do turismo rural e a uma descoberta de vidas alternativas ao modelo urbanocêntrico, actualmente em crise. Isto é demonstrado pelo mercado crescente deste tipo de turismo, tanto em Portugal como em Itália, de onde vos escrevo. Mas se o turismo pode, certamente, desempenhar um papel económico importante, o risco é uma outra forma de extractivismo.
A lógica turística, de facto, não é territorializada: muitas vezes, temos um turismo padronizado, desconectado do território, em vez de basear-se nele, nos lugares e nos habitantes que o ocupam. Como se esses lugares fossem espaços vazios a serem preenchidos com imaginários e necessidades de quem vive num outro lugar; ou como se esses lugares e os seus “patrimónios” fossem mercadorias a ser revendidas e, por isso, embaladas como lugares idílicos pertencentes a um passado nostálgico ou a uma ideia pré-concebida que se ajuste à imagem que os turistas de várias nacionalidades têm deles. Por mais de um ano, vivi numa área montanhosa, nas montanhas de Abruzzo, na Itália, e por apenas dois meses residi no Parque Natural da Serra da Estrela, em Portugal. Aqui, pude observar essas dinâmicas e perceber como, muitas vezes, dentro das lógicas turísticas, um país ou território corre o risco de ser representado como uma mercadoria a ser vendida a um turista em busca de “autenticidade”.
Neste sentido, não só a história recente destes lugares é muitas vezes negada, invisibilizada, como também, através destas lógicas, é romantizada e transformada em mercadoria, com efeitos na relação dos habitantes locais com o seu próprio mundo e memória. Com esta reflexão, não pretendo negar os efeitos positivos que o turismo – um certo tipo de turismo – pode ter. Pretendo, isso sim, tentar reflectir sobre as criticidades do modelo de turismo dominante, que faz com que os lucros caiam nas mãos de poucos, muitas vezes, à custa de recursos comuns, como é o caso da construção de instalações de esqui muito impactantes, na sua maioria, em montanhas que vêem cada vez menos neve.
É também necessário denunciar a frequente ausência de alternativas ao turismo nestes territórios. Mas já existem pequenas possibilidades, populares e isoladas: formas de repensar o turismo para além da retórica atual; um turismo de proximidade, baseado nas especificidades do território, na sua história e nas histórias de quem o habita e vive diariamente. É necessário, também, denunciar a frequente ausência de alternativas ao turismo nesses territórios. Mas pequenas possibilidades de baixo para cima e isoladas já existem, entre elas, maneiras de repensar o turismo além da retórica atual; um turismo baseado no local, nas especificidades do território, na sua história e nas histórias de quem o habita diariamente. Um exemplo disso é a região de 230 habitantes, onde morei por mais de um ano, em Gagliano Aterno, em Itália.
Após anos de trabalho comunitário mediado por um grupo de pesquisadores sociais, na aldeia surgiu uma forma de turismo baseada no desejo de compreender o processo cultural de regeneração em curso na pequena vila: os visitantes têm a oportunidade de conhecer a vila guiados por alguns residentes locais, falar sobre os processos dos últimos anos e discutir o processo de despovoamento e os impactos, ainda visíveis, do terremoto de 2009.
Outro exemplo foi a minha experiência na Serra da Estrela. Aqui, apenas me deterei em dois aspectos, entre muitos outros, que me permitiram conhecer a zona em profundidade e em múltiplos aspectos durante a minha colaboração com a ASE. Por exemplo, o meu conhecimento da zona passou por ajudar a reparar algumas veredas, acompanhado por pessoas que conhecem profundamente a zona em todos os aspectos e contribuem para a sua preservação e usufruto; pela minha colaboração com o pastor Filipe e a sua história do regresso à revalorização das raças bovinas locais, como a Bordaleira, que se entrelaça com muitos outros aspectos fundamentais da história e das possibilidades actuais da zona, que tive oportuindade de descobrir: desde a produção do Queijo Serra da Estrela, até à indústria local de lanifícios da Serra da Estrela, representada hoje pelo Burel.
Caso contrário, corre-se o risco de que mesmo as altas montanhas se tornem um espaço para onde a cidade e o modelo urbano simplesmente se expandem, mesmo que apenas simbolicamente, e em termos de imagens e modelos de desenvolvimento. Talvez o trabalho em rede de pequenas realidades activas no território e que têm muito para contar sobre a memória, a história e o quotidiano destes lugares possa constituir uma oportunidade real e participativa de conhecer o mesmo, ainda que para quem vem de fora. O problema é que mesmo as políticas institucionais, como a lógica do turismo, são abstractas, descontextualizadas e lançadas de cima para baixo: não estão enraizadas nos territórios e não os conhecem.
EN
Tourism in mountains and inner areas is often based on a common contemporary idea around these territories as out of time, or still in an idyllic past. But these territories have a history to highlight that is the counterpart of the present situation of crisis of the urban model: a history of political decisions and economic strategies of urbanization and centralization that led to the actual marginalization characterized by poor access to services (healthcare, education, transportation), low levels of income and productivity, progressive abandonment and population aging, and environmental vulnerability.
If the relation between cities and inner or mountain territories has been a history of extractivism and inequalities, now we seem to see a trend of valorization through rural tourism and a discovery of alternative lives to the urban-centric model now in crisis. This is demonstrated by the growing market of these kinds of tourism. In Portugal, as much as in Italy, where I write from. But if tourism can certainly play an important economic role, the risk is another form of extractivism.
The logic of tourism, in fact, is not territorialized: you therefore have a tourism that is often standardized, abstracted from the territory instead of being based on it, on the places and on the people who inhabit it: as if these places were empty spaces to be filled with the imaginaries and needs of those who live elsewhere; or as if these places and their “heritages” were goods to be resold and for this reason packaged as idyllic places that belong to a nostalgic past or a packaged idea that fits the image that tourists of various nationalities have of them.
For over a year now, I have had the opportunity to live in a mountainous area in the mountains of Abruzzo, Italy, and also, albeit for only two months, in the Serra da Estrela Park in Portugal. Here, I was able to observe these dynamics and to perceive how often within the logic of tourism a country or an area risks being represented as a commodity to be sold to a tourist in search of “authenticity.”
In this sense, not only is the recent history of these places often denied, invisibilized, but through these logics it is also romanticized and made into a commodity, affecting the relationship of local inhabitants with their own world and memory. By such reflection I do not intend to deny the positive effects that tourism-a certain kind of tourism-can have. If anything, I intend to try to reflect on the criticalities of the dominant tourism model that brings profits into the hands of a few, often preying on common resources, as is the example of building very impactful ski facilities and mostly in mountains that see less and less snow.
It is also necessary to denounce the frequent absence of alternatives to tourism in these areas. But small possibilities from below and isolated already exist: ways of rethinking tourism beyond current rhetoric; place-based tourism, based on the specificities of the territory, its history and the stories of those who inhabit it and live it daily.
One example is the town of 230 inhabitants where I lived for more than a year, Gagliano Aterno in Italy. After years of community work of participation and activation from below mediated by a group of social researchers, a form of tourism has been activated in the village based on the desire to learn about the cultural process of regeneration taking place in the small village: visitors get to know the village guided by some of the inhabitants, to talk about the processes that have been taking place in recent years, to talk about the process of depopulation and the still clearly visible impacts of the 2009 earthquake.
Another example was my experience in the Serra da Estrela. Here I will focus only on two aspects among many that allowed me to know the area in depth and in multiple aspects during my collaboration with ASE. For example, my knowledge of the place came through participation in the repair of some mountain trails accompanied by people who deeply know the area in every aspect and contribute to its preservation and enjoyment; through my collaboration with the shepherd Filipe and his personal path of returning to the revalorization of local cattle breeds such as the Bordaleira, a practice that is intertwined with many other fundamental aspects of the history and current possibilities of the area that I was able to discover: from the production of Queijo Serra da Estrela, to the local wool industry of Serra da Estrela represented today by Burel.
Otherwise, the risk is that even the mountains become a space toward which the city and the urban model simply expands, if only symbolically and at the level of imaginary and development models. Perhaps networking small realities active in the area, rooted in memory, history and everyday life in these places can provide a real and participatory possibility of knowledge of the area even for those who come to visit from outside. The problem is that even institutional policies, like the logic of tourism, are not rooted in the territories and do not know them.
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Bem haja pelo excelente artigo e tão lúcida e sensata visão!
Excelente texto. Certeiro na avaliação e realista nas propostas.
Abraço.
Sérgio